CARTAS DE LONDRES
Liberalismo e Direita II
O liberalismo quando surgiu em Portugal era também claramente de esquerda (um ponto que me parece dispensar grandes detalhes), e teve de fazer um guerra civil para se afirmar. Claro que com o decorrer do século XIX, o liberalismo foi-se consolidando na Europa e nos EUA (também depois de uma sangrenta guerra civil), pelo que muitas das causas da primeira geração liberal foram-se tornando cada vez mais aceites nas justamente qualificadas de democracias liberais. Hoje há um grande consenso liberal nas ditas democracias no que respeita, por exemplo, aos direitos, liberdades e garantias. No entanto, nem todos se lhe afeiçoaram da mesma maneira. Hoje, sejamos claros, existem liberais mais à esquerda e mais à direita. É verdade que na Europa é a direita que mais depressa assume essa etiqueta. Mas na Grã-Bretanha e nos EUA muita da esquerda o faz. Blair ou Clinton reclamam uma herança liberal, como o fizeram Roosevelt ou Kennedy, e mesmo Churchill. Alguém como Arthur Schlesinger Jr. dificilmente pode ser considerado um ideólogo esquerdista.
O termo neo-liberalismo foi criado por alguma razão. Qual seja, o seu cepticismo extremo em relação ao Estado que o aproxima do anarquismo. Daí se falar de libertários de direita. Nisso está bem distante do liberalismo clássico.
Por fim, quanto à anglofilia contra francofilia, o mais ridículo da questão é que nos EUA e na Grã-Bretanha, particularmente nos meios intelectuais mais conservadores, continua a ser de bom tom um bom domínio do francês e um contacto frequente com Paris, e os meios intelectuais franceses. Leia-se a este propósito
Ravelstein, a última novela do maior escritor americano vivo, Saul Bellow, um
roman à clef centrado no seu amigo Alan Bloom... Onde umas das personagens é a carinha chapada do Paul Wolfowitz , deputy secretary of defense e antigo aluno de Bloom, que é também o mais influente dos intelectuais neo-conservadores. O qual até veio dizer que não ligava assim tão frequentemente ao seu antigo mestre como o seu alter ego no livro, caro
João Marques de Almeida...
PS Quanto
à Democracia na América ser uma obra menor e cheia de patetices, também não concordo. Mas lá que é longa e tem alguns problemas de estrutura, e é mais citada do que lida...
Liberalismo e Direita I
O AAA é um bloguista muito sabedor e sem dúvida um convicto liberal. Também oferece poucas dúvidas de que é de direita e um anglófilo. Mas estranhamente, tal como uma série de outros bloguistas, resolveu há pouco voltar a insistir num par de ideias erradas muito espalhadas em Portugal e que teve agora um novo momento de glória numa série de blogues. A primeira é a anglofilia deve ser vista em concorrência com o tradicional monopólio da francofilia em Portugal. A segunda é a de que o liberalismo é sinónimo de direita. Quer o
Rui Tavares quer o
André Belo já deram alguma resposta, provocando uma
reacção energética mas pouco liberal do AAA.
Mas, para citar os indispensáveis Dupond e Dupont, eu diria mesmo mais. A divisão entre esquerda e direita parece mais ou menos endémica nas democracias parlamentares, mas a expressão data, de facto, da Revolução Francesa. Mas quem era a esquerda em França em 1790? Adivinhem lá? Os liberais! Nomeadamente esse grande herói da Guerra da Independência da América (é, por coisas como esta, caro
Paulo Mascarenhas, que a cronologia não é irrelevante), o general marquês de la Fayette. Que ainda mexia em 1830 quando organizou uma revolução para depor o despótico Carlos X. Em 1848, na primavera dos povos, adivinhem de que lado estavam os liberais? Tocqueville até foi ministro dos estrangeiros da breve Segunda República Francesa derrubada por Napoleão III em 1850.
Afinal não havia nada...
Lord Hutton, o juiz que tinha servido na Irlanda do Norte, não encontrou nada de significativamente errado na forma como Blair conduziu a Grã-Bretanha para a guerra. Isto apesar de os documentos que reuniu e das inquirições que realizou terem tido o efeito contrário em boa parte dos analistas e da opinião pública.
Lord Buttler, que quase foi morto pelo IRA por duas vezes, e já foi o equivalente do ficcional mas sempre tão verdadeiro Sir Humphrey do Sim, Sr. Primeiro-Ministro, ou seja, chefe dos civil servants e chefe de gabinete do primeiro-ministro, previsivelmente considerou que havia erros e problemas nas informações sobre o Iraque e as ADMs, mas que não eram culpa de ninguém, muito menos do primeiro-ministro. Surprise, surprise. Eu, na boa fé de Blair na crença de que existiriam ADMs no Iraque até posso acreditar. Mas é pedir muito, quererem fazer-nos crer que todo o empenho do governo americano e britânico em derrubar Saddam, a pressão constante para os serviços secretos encontrarem dados compremetedores e para os divulgarem publicamente, não foi a grande responsável pela fragilidade da informação "secreta" que veio a público.
No entanto, em mais uma demonstração da sua habilidade política, Blair até aproveitou a divulgação do inquérito para admitir que afinal podia não haver ADMs no Iraque, que afinal não havia mesmo nada. Já desconfiávamos...
Desistir da Política?
Vous avez beau de ne pas vous occuper da la politique. Elle s'ocuppera quand même de vous.
Montalembert
Nós bem podemos querer desistir dela, mas ela não desiste de nós...
Portugal que Futuro?
Se continuar como agora, vai ser pior do que agora... Apesar da confusão que reina no país, e da triste coincidência de uma sucessão de mortes de pessoas devotadas ao serviço público e à palavra limpa e justa, um aspecto positivo desta crise é que ela tem suscitado mais tentativas de reflexão aprofundadas, e mais propostas de reforma do que eu esperaria.
Há uma mudança fácil, pois neste caso é só mesmo alterar a lei, mas urgente. Encurtar os prazos para a realização de eleições e constituição de um novo governo. A necessidade de simplificar o processo de alternância política ordenada, a essência da democracia, ficou por demais evidente.
Mas uma reforma à ateniense seria a minha preferida. Selecção por sorteio de todos os magistrados excepto os que exigem formação técnica. A renovação radical fica garantida, não havia jobs for the boys, e podia ser que chegasse algum bom senso e verdadeira vontade de mudar à política.
Depois há as propostas verdadeiramente radicais como as que
Medina Carreira fez em entrevista recente, com urgente prioridade ao ordenamento, justiça e fiscalidade. Será que este senhor nunca desiste de desafiar as elites portuguesas para um pacto de regime de um reformismo radical para pôr o país no século XXI (para citar o primeiro-ministro indigitado, que parece querer investir para o efeito nas empresas de mudanças)?
Pessimismo activo foi o que sempre faltou a Portugal onde sobra o fatalismo paralítico. Que serve, aliás, um partido situacionista que resistiu a todas as mudanças desde o século XIX. Já então era complicado fazer reformas dos impostos, e ficou-se pela modernização das infraestruturas materiais sem nunca se conseguir fazer a viragem organizativa. Do capital humano, como agora se diz... Será que também no legado o Cavaquismo se assemelhará ao Fontismo?
Graça?
No
Expresso, Fernando Madrinha vem dizer que Santana Lopes 'merece o benefício da dúvida'. Tem, por outras palavras, direito a um período de graça como qualquer novo primeiro-ministro. Não o vai ter. Não o deve ter. Porque como já ensinavam Victória, Suarez, Vieira, e outros jesuítas revolucionários de há uns séculos atrás, a graça divina dos magistrados vem de Deus mas por via do povo. Ou seja, não há eleições, não há graça. Santana, no entanto, contará com uma coisa parecida nos seus efeitos. É que ele só pode exceder as expectativas pela positiva.
Hamlet Sampaio e Santana Jetset
Não há dúvidas de que Jorge Sampaio tinha uma escolha difícil. Tendo em conta a recusa pelo PPD/PSD e CDS/PP de eleições, ao contrário de há dois anos atrás em que acharam que a atitude de Guterres e do PS era a única aceitável. Tendo em conta também a escolha de primeiro-ministro de Durão e do Conselho Nacional do PSD. Não me custa a acreditar que partindo daqui o presidente fez a escolha que considera menos má para o país. Mas não vejo (
caros libertários de direita) qual o espanto, visto que o próprio presidente e tanta gente de topo do PSD parecem desconfiar das qualificações de Santana Lopes para o lugar, que muito gente de esquerda considere esta decisão do presidente que eles ajudaram a eleger, e cuja noção de interesse público julgavam comungar, como inexplicável e altamente criticável. Seria a direita mais generosa com o presidente se a decisão fosse ir para eleições antecipadas? Lendo o Independente de sexta-feira não fiquei com essa ideia.
Mas isto não é o principal. Para mim o grande problema são… dois. Primeiro, como mobilizar os portugueses para as reformas de fundo, algumas dolorosas, que me parecem cada vez mais urgentes, quando se recusa dar-lhe voz? Segundo, haveria pior momento para ter um primeiro-ministro como Santana Lopes?
Em todo o caso, vai ser curioso ver como é que ele lida com as expectativas dos seus amigos do jetset. E se estas portuguesas e portugueses, por regra sem nenhum historial de serviço público ou até de não menos honroso trabalho privado de monta, lhe vão criar menos dificuldades a ele do que os amigos de Sampaio a Sampaio... Ou será que para agarrar o único lugar que talvez não lhe interesse largar ao fim de pouco tempo, Santana vai deixar cair o jetset?
Elisabeth II + Eanes = ?
Vai ser interessante ver o
futuro deste estranho casamento, político claro, entre a Rainha de Inglaterra e o General Eanes, duas personalidades que eu muito respeito pela sua devoção à causa pública, mas que não me parecem exactamente muito compatíveis.
Internacionalmente 2
As coisas correm mal no Iraque. Era de esperar neste período de transição. Resta saber qual será a capacidade de reacção do novo governo, o carisma do seu novo líder (se sobreviver aos previsíveis atentados), e sobretudo a sua capacidade para criar uma divisão entre os resistentes locais, cooptando-os através da amnistia, e os islamistas radicais, muitos deles estrangeiros. Um aspecto essencial é o reforço da capacidade das forças de segurança locais, nomeadamente em termos de eficácia militar, mas também, tão ou mais importante, de interacção com as populações e recolha de informações. O outro é existirem pelo menos perspectivas de crescimento económico e de emprego que venha a ocupar de forma útil os quase 50% de desempregados.
Sobre isto vale a pena ler mais este texto de Michael O'Hanlon da Brookings que tem acompanhado e quantificado sistematicamente a situação no Iraque.
Acidentalmente
Anda muito activo
O Acidental e ainda bem, até porque ganhou mais um nome de peso. Tal como o Luciano Amaral também anseio, sem grande esperança, que se houver eleições agora, elas sirvam para obrigar os partidos a assumir a seriedade da crise e avançar com agendas reformistas, quer à esquerda quer à direita. Mas já não creio que o problema do Santana seja a falta de cultura ou de pedigree. Penso que é mais falta de bom senso e excesso de jetset, que aliás incomodaria menos se não fosse o verniz útil para disfarçar a falta de realizações que justifiquem tanta atenção pública.
Partilho a preocupação do João Marques de Almeida com a legalidade constitucional. Não tenho dúvidas que qualquer decisão do presidente será constitucional. Estranho seria o contrário. E já várias vezes critiquei os excessos de retórica que minam a legitimidade do próprio sistema. Santana e Portas é que parece que não aceitam bem este facto. Será que a crítica de JMA também se lhe aplica? Quanto à Primeira República é um bom exemplo de muitos excessos, mas particularmente dos excessos do parlamentarismo, por exemplo, na ausência de um mecanismo legal de dissolução do parlamento, e num presidente da república desprovido de poderes. Será que é mesmo de regresso a esse passado que devemos caminhar?
Os erros de Durão e companhia
Foram dois os erros de Durão Barroso e companhia.
O primeiro foi ter dado a entender que o presidente Sampaio tinha aceite condicionar o livre exercício dos seus poderes no caso de demissão do primeiro-ministro. Um erro agora repetido de forma ainda mais marcada por Santana Lopes na sua entrevista de segunda-feira. E por Paulo Portas no dossier apresentado a Belém e à imprensa. Será que tudo isto é uma jogada sofisticada para garantir eleições antecipadas? Se sim, é uma brincadeira de mau gosto. Se não, o que parece mais provável, revela completa falta de senso político.
O segundo erro foi precisamente Santana Lopes surgir como sucessor de Durão no PSD e como (potencial) primeiro-ministro. Se Durão tivesse imposto uma sucessão bicéfala, com Ferreira Leite a suceder-lhe em São Bento e Santana na Lapa, num gesto que seria visto como de subordinação dos interesses partidários ao interesse geral da continuidade da política de contenção num momento de crise económica, a contestação provavelmente teria sido muito menor, excepto da parte do Santana, claro...
Agora está tudo nas mãos de Sampaio. Percebe-se que ele tema que o país viva paralisado por alguns meses, para eventualmente cair numa nova crise de governabilidade se não resultar uma maioria clara das eleições. Mas parece altamente improvável que aceite arcar com a responsabilidade de um governo chefiado por Santana Lopes. E a ideia de que poderia fazer uma fiscalização particularmente intensiva desse governo além de duvidosa equivaleria a aceitar uma espécie de crise política permanente. Ou alguém acredita que Santana e Portas aceitariam de bom grado os bons conselhos de Belém? Sobretudo depois das declarações recentes de ambos?
Os argumentos e preocupações de Paulo Rangel são interessantes. Como são os de José Manuel Fernandes. Mas não têm em conta um dado fundamental, os resultados das eleições europeias escassas semanas antes desta crise. Ou a total ausência de bom senso dos líderes da "maioria". Alguém ainda pode acreditar que a tomada de poder por Santana em aliança com Paulo Portas representará uma derrota do caudillismo e do populismo? Depois das últimas declarações de Santana e de Portas, alguém acredita que uma cedência do presidente será vista como algo menos do que uma rendição?
O fim do sonho
Seria menos amargo se não tivéssemos ido tão longe? Ou se tivéssemos sido claramente derrotados por um adversário superior? Não sei. Sei que a selecção lutou até ao fim. Nem sempre esteve no seu melhor, e não temos de ficar alegres com o resultado. Mas devemos louvar o seu esforço (como ontem fez o presidente Sampaio numa cerimónia exemplar). Nomeadamente de Figo, que no domingo, mais uma vez, a alguns minutos do apito final, esteve quase a marcar o golo merecido. Mas como ele dizia ao Guardian há um mês atrás,
'não é por termos um sonho que ele necessariamente se concretizará', nem mesmo se trabalharmos muito para ele... Pelo menos podemos dizer que tentámos.
Verão e livros
Está calor e eu estou cansado e ainda por cima a precisar de trabalhar muito. Daí postes mais espaçados no tempo. Suponho que também estejam de férias ou a precisar delas e tenham por isso mais que fazer. Mas ficam prevenidos! Talvez aproveite para fazer umas sugestões para quem troque o nosso jardim à beira mar plantado por Londres.
Para já fica uma sugestão de leitura, o livro de Rui Ramos,
Outra Opinião : Ensaios de História, que é praticamente oferecido na edição desta semana do
Independente. Eu próprio a vou seguir porque não consegui ler alguns dos ensaios. O Rui Ramos é um bom exemplo do gosto por fazer da história algo mais do que simples erudição ou propaganda para transmitir os valores certos às massas ou às criancinhas. O Portugal Contemporâneo do Oliveira Martins provocou uma pequena tempestade intelectual quando foi publicado. Duvido, tal como
quem me chamou a atenção para este acontecimento editorial, que este seu alter ego provoque grande polémica. Será mesmo que estamos hoje intelectualmente mais conformistas do que há cem anos atrás? Provavelmente sim. O truque é ignorar as críticas, aprender a não dar tempo de antena ao adversário.
Não vou propriamente abrir aqui as hostilidades, mas aponto para a melhor intuição do autor e talvez a mais polémica: a de que a vitória liberal em 1834 foi a grande revolução do Portugal Contemporâneo (nisso ele segue Oliveira Martins sem cair na nostalgia atávica pelo miguelismo). Ela condicionou tudo o que se seguiu. Mesmo, Salazar, e mesmo, não tenho dúvidas, o jacobinismo republicano ou os excessos do PREC. A essa herança liberal devemos a relativa benignidade dos momentos mais dramáticos e negros do nosso século XX, em que para espanto de tantos estrangeiros, tivemos ditaduras e revoluções sem execuções.
Caos terceiro-mundista
Querem saber como é que é Londres sem o metro? A greve de ontem fez a vontade aos curiosos. Eu por mim bem que dispensava a resposta...