A morte saiu à rua
É habitual os mortos fazerem umas visitas aos vivos para resolver problemas pendentes. A blogosfera presta-se aliás a aparições virtuais. Infelizmente estes trocadilhos mortais perderam muito da sua piada num dia como o de hoje.
O Fernando escapou por pouco, e está numa forma que nos deixa a todos orgulhosos. Mas ainda não sei de vários dos meus amigos londrinos que costumam rondar aqueles sítios de morticínio, dois deles a dez ou quinze minutos de onde moro. Só espero que estejam bem, a todos a minha força, neste dia em que a morte saiu à rua na cidade onde tenho vivido nestes últimos anos.
Eu não estou em Londres. Hoje isso parece traição. Mas vou voltar, claro. Não se pode deixar esmorecer a cidade que venceu o Blitz, por cujas cicatrizes passo nas minhas caminhadas diárias para o trabalho (nunca fui fã do metro londrino, nem grande crente em qualquer mecanismo de segurança no caos da hora de ponta). Não se pode deixar amedrontar a cidade que conviveu durante anos com o terrorismo do IRA. Estes ataques são mais ameaçadores porque mais incertos. Não há sirenes nem abrigos. Não há avisos telefónicos. Mas toda a vida é incerteza. Só a morte é certa. E como Shakespeare através do seu Júlio César explicava, um covarde morre todos os dias, um homem só morre uma vez. (Com a desvantagem, bem sei, de que dai a pouco César morre. Veja-se como piada, ou como simples aviso, de que falar assim tem custos.)
As minhas ideias e princípios não saem abaladas destas explosões. A tristeza e a preocupação são muitas. Mas abandonar a lucidez é deixar que o terror vença. Seria também pouco britânico. Segue-se uma análise - um pouco uma síntese do que por aqui fomos dizendo nas Cartas sobre este tema - em jeito de homenagem e fecho.
Há grupos islamistas radicais – a nebuloso chamada al-Qaida – com objectivos e métodos inaceitáveis que devem ser combatidos. Ninguém de bom senso nega isso. Mas claro que isso não dispensa que se pense a melhor forma de os combater. Como não desculpa que se faça de um bilião de muçulmanos, alguns dos quais provavelmente entre os mortos nos ataques de hoje, um bode expiatório fácil. Prender pessoas a eito por suspeitas vagas apenas acirra ressentimentos e entope a investigação com informações inúteis e inocentes injustiçados.
Não há atalhos para combater o terrorismo. Infelizmente. Há coisas que se podem e devem fazer em tempos de maior ameaça. Os serviços de informações devem poder, como aliás já sucede, seguir, escutar, observar e cruzar informações com mais latitude do que em tempos de paz. Mas algum tipo de mecanismo de controlo deste tipo de actividade deve continuara funcionar. Os julgamentos de terroristas devem poder ser reservados sempre que isso se justifique para proteger fontes e métodos. Mas as garantias fundamentais devem continuar a funcionar. Sacrificar a nossa liberdade em nome da eficiência no combate ao terrorismo é sacrificar o essencial em nome de um sentimento de segurança ilusório e populista.
Muito do realmente importante no combate ao terrorismo passa, aliás, por medidas, que por serem caras ou mexerem em grandes interesses, provocam hesitações e resistências, e de que se fala pouco. Por exemplo, a utilização de nova tecnologia e novos e, por vezes morosos, controlos para testar passageiros e mercadorias em portos, aeroportos ou estações. Ou o ataque aos paraísos fiscais e a outras formas, muitas delas legais, de ocultação de capitais, usadas pelas redes terroristas para financiar os seus ataques. Mas restringir radicalmente a liberdade de viajar, ou de comerciar, seria a morte da globalização e a vitória de grupos ferozmente «tribais», seguidores do mote antes sós que mal acompanhados, como a al-Qaida e seus imitadores.
E continuo a acreditar – ó escândalo – que o combate ao terrorismo beneficiaria muito com um esforço para integrar os marginais da sociedade internacional. Não significa isto que esteja convencido que se bin Ladin for tratado com jeitinho se vai tornar um pacifista; ou que se possa ou deva negociar com estes terroristas; ou que subscreva a tese ridícula de que os terroristas são pobres, excluídos no sentido mais corriqueiro. Sobretudo os seus chefes não o são.
Quem tem fome não tem cabeça para organizar ou executar grande coisa, muito menos atentados deste calibre. Mas excluído não quer dizer apenas pobre ou analfabeto. Grande parte das pessoas do mundo muçulmano e de quase todos os países não-ocidentais sentem-se excluídos. Excluídos internamente por regimes autoritários e violentos. Mas também excluídos das grandes decisões que afectam o mundo. Democratizar – e desenvolver – é um passo importante para diminuir o campo de recrutamento e apoio a estes grupos. Mas também o é dar passos para integrar o melhor possível as comunidades imigrantes no Ocidente e criar uma sociedade internacional mais justa.
O discurso hegemónico de George W. Bush, de quem quer impor democracias à força, mas deixa claro que depois quem manda no mundo são os EUA, é a melhor garantia que cada vez mais árabes, muçulmanos, enfim todos os que não tiveram a suprema sorte de nascer norte-americanos, se sentirão cidadãos de segunda na sociedade global.Há que não ter ilusões sobre a natureza deste inimigo: as redes de radicais jihadistas despreza o Ocidente por ser diferente, e arrenegam qualquer ideia de liberdade ou direitos humanos. Mas reduzir o combate ao terrorismo ou à guerrilha a um processo simplesmente policial e militar seria um erro. Não conheço nenhum caso – e estou a trabalhar precisamente no campo dos conflitos assimétricos – que tenha sido resolvido apenas assim.
Para se ser duro com o terrorismo não é preciso ser-se injusto. Para se ser forte contra o terrorismo não é preciso ser-se cego. Pelo contrário, quanto mais justo o combate mais legitimidade conquistará. Quanto mais inteligentemente essa luta for conduzido mais resultados obterá. O combate ao terrorismo é difícil. Será sempre.
Mas só se não trairmos os nossos princípios teremos a certeza de que vale a pena continuar a lutar.PS - Este é um post sem exemplo. Amanhã ou qualquer dia talvez explique porque não vou continuar com a escrever cartas de Londres.